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A Ceia de Páscoa, como narram os Evangelhos, não foi um banquete para celebrar a ordem estabelecida, mas um ato de resistência espiritual. Jesus reuniu à mesa quem a sociedade marginalizava — os que viviam à margem das normas rígidas do poder religioso e político de sua época.
Nesse contexto, o Padre Júlio Lancellotti não apenas teria lugar nessa ceia como seria um de seus pilares. Sua vida, dedicada aos descartados da sociedade, reflete os valores do Reino que Jesus anunciava: um chamado à justiça, à misericórdia e à coragem de desafiar sistemas que esmagam os vulneráveis.
Lancellotti construiu sua trajetória ao lado de quem o mundo prefere ignorar: moradores de rua, crianças vítimas de violência institucional, jovens da FEBEM e pacientes com HIV/AIDS.
Enquanto muitos reduzem a pobreza a um "fracasso individual", ele mergulhou nas entranhas da cidade para cuidar de corpos e almas esquecidos. Jesus disse: "O que fizerdes ao menor destes, a mim o fizestes" (Mateus 25:40) — e o padre, ao abraçar meninos torturados nas unidades da FEBEM ou ao fundar a Casa Vida para crianças com HIV, encarnou essa máxima. Sua luta não se resume a palavras piedosas: é ação concreta, como a de Cristo, que curava leprosos e comia com "pecadores".
Lancellotti não se calou diante das atrocidades cometidas contra adolescentes na FEBEM, mesmo quando isso lhe custou agressões físicas e ameaças. Em 2001, durante uma rebelião em Franco da Rocha, ele foi espancado por monitores, mas respondeu com perdão: "Prefiro rezar por eles". Essa postura ecoa a de Jesus, que enfrentou a hipocrisia dos poderosos e pagou com a cruz.
Hoje, enquanto alguns preferem fechar os olhos para as chacinas de jovens negros ou para a violência policial, o padre segue denunciando o que a maioria prefere varrer para debaixo do tapete.
Assim como Jesus aproximou samaritanos e publicanos, Lancellotti rompe barreiras: organizou cultos ecumênicos em memória de vítimas da Cracolândia, unindo ateus, evangélicos e católicos. Sua fé não se fecha em dogmas, mas se abre à diversidade, lembrando que o Evangelho não é propriedade de uma elite moral. Enquanto alguns usam a religião para dividir ou ganhar influência política, ele a emprega para costurar laços entre os excluídos.
E apesar de prêmios e títulos, Lancellotti mantém uma vida simples. Quando vítima de extorsão — com falsas acusações de pedofilia usadas para chantageá-lo —, optou pelo perdão em vez de vingança. Essa humildade, marca de Cristo que lavou os pés dos discípulos, contrasta com a ostentação de quem transforma a fé em espetáculo ou ferramenta de poder.
Diante disso é certo afirmar que Jesus convidaria Lancellotti porque ele é a antítese do "cristianismo light", aquele que se contenta com rituais vazios ou com a defesa de um "Brasil acima de tudo" que ignora os que estão embaixo. Sua presença na ceia seria um lembrete de que o Reino de Deus não se constrói com discursos de ódio ou indiferença, mas com mãos sujas de terra e coração aberto aos marginalizados. Enquanto muitos oram por "prosperidade", o padre reza — e age — para que os "últimos" sejam os primeiros. E é justamente isso que o Evangelho pede.