O frágil brilho do valor humano: o que a polêmica da xícara diz sobre nós

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Se o homem foi feito do barro pelas mãos divinas, a sociedade o pintou com argila branca e o transformou em porcelanato. Entendendo isso como ninguém, há tempos, a marca Tânia Bulhões tornou-se sinônimo de luxo no Brasil. Suas porcelanas, com preços exorbitantes, adornam mesas de quem busca, através delas, proclamar ao mundo sua posição social elevada. A empresária mineira, que começou pintando peças à mão em Uberaba há 35 anos, transformou seu nome em um império. Contudo, como bem sabem os leitores shakespearianos, nem tudo que reluz é ouro — ou, nesse caso, porcelana.

Recentemente, consumidores descobriram que algumas peças vendidas pela grife eram fabricadas na Turquia, sob licenciamento externo, e não tinham a exclusividade prometida pelo preço astronômico. Uma cliente, curiosa, raspou o fundo de uma xícara e encontrou a inscrição “Made in Turkey”. Outra percebeu que itens idênticos aos da coleção Marquesa estavam à venda em restaurantes na Tailândia, sem o selo da marca. Diante do escândalo, a empresa se desculpou, descontinuou quatro coleções e ofereceu trocas ou devoluções. Mas será que isso basta? Ou estamos diante de algo mais profundo, um reflexo de nossa própria sociedade?

Nossa cultura contemporânea parece ser regida pelo mesmo princípio que moveu as personagens de romances do século XIX: a aparência importa mais que a essência. Se Capitu vendesse porcelanas, certamente elas teriam "olhos maiores que a fome", capazes de seduzir qualquer comprador. O que vemos aqui é um microcosmo das contradições de uma sociedade que venera objetos como símbolos de status. Comprar uma peça Tânia Bulhões não era apenas adquirir utilidade; era comprar um pedaço de prestígio, uma narrativa de sofisticação. Quando essa ilusão se quebra, resta apenas o caco frio da realidade.

O episódio também revela outra face cruel: a exploração econômica disfarçada de exclusividade. Afinal, quem paga milhares de reais por louças espera mais do que beleza funcional — deseja singularidade. No entanto, quando se descobre que tais produtos são feitos em massa em outros países, surge a pergunta inevitável: onde está o valor verdadeiro? Aqui, poderíamos evocar autores marxistas, cujas análises sobre fetichismo da mercadoria explicariam tão bem esse fenômeno. Estamos lidando com a alienação moderna, onde o consumidor compra não o objeto em si, mas o significado artificial que lhe foi atribuído.

E se formos além, chegaremos ao cerne da questão: por que vivemos numa sociedade que valoriza tanto o supérfluo? Num mundo ideal, talvez inspirado pelas utopias socialistas de Fourier ou Saint-Simon, nossas prioridades seriam outras. Em vez de acumular porcelanas caras para impressionar visitas, buscaríamos formas de garantir igualdade, justiça e dignidade para todos. Não precisaríamos nos esconder atrás de marcas famosas para provar nosso valor, porque o valor humano seria medido por aquilo que compartilhamos, não pelo que possuímos. É extremamente frustrante enquanto sujeitos chegarmos a conclusão de que objetos feitos de argila branca e água, como porcelanatos, muitas vezes, possuem mais valor social do que o alimento que eles servem. Os seres humanos são constituídos de um complexo organismo de células, sinapses cerebrais, sistema nervoso, anatomia autocurativa, enfim, um fascinante produto da natureza que, para muitos, vale menos do que um pires.

Infelizmente, ao se concluir que ideias soam menos valiosas do que materiais concretos, é possível imaginar que a porcelana, tão frágil quanto bela, é como a sociedade em que vivemos: brilhante à primeira vista, mas quebradiça sob pressão. E assim como aquele pires rasgado pela curiosidade revelou sua origem turca, também nós, ao arranharmos a superfície desta civilização materialista, encontramos não originalidade, mas repetição; não autenticidade, mas cópia. Talvez seja hora de trocar as porcelanas vazias por pratos cheios de solidariedade — afinal, até mesmo Platão sabia que o banquete da vida só faz sentido quando partilhado. 

*Carlos Alberto Medeiros (Chal Emedrón), licenciado em Letras pela Universidade Federal da Bahia, apaixonado por política, comportamento humano e cultura pop.
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