As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do Irecê Notícias. Os conteúdos apresentados na seção de Opinião são pessoais e podem abordar uma variedade de pontos de vista.
Como o título evoca, trataremos de um complexo, termo que, na psicologia, refere-se a uma série de emoções, memórias e traumas marcantes para o inconsciente e que, quando não resolvidos, seguem influenciando o comportamento e as ações de um indivíduo ou mesmo de uma sociedade, caso tratemos de grandes eventos traumáticos. Inclusive, se você olhar bem nos textos anteriores da coluna, os quais recomendo a leitura prévia, o assunto já começava a ser esboçado.
Nesse caso, o termo “complexo de vira-lata”, apesar de tratar justamente da psique, foi criado não por um psicólogo, mas por um dramaturgo e colunista brasileiro chamado Nelson Rodrigues. Em 1958, às vésperas da Copa do Mundo na Suécia, a revista Manchete Esportiva publicou o texto “Complexo de Vira-Latas”, que pode ser encontrado facilmente na internet e define a questão analisada como “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. Para explicar essa característica, Nelson utiliza a fatídica derrota da seleção masculina de futebol na Copa do Mundo de 1950.
Conhecida como “Maracanazo”, a partida é considerada um dos maiores reveses do futebol brasileiro. Apenas imagine: o esporte mais amado do país, final de Copa do Mundo, disputada em pleno território nacional, Maracanã lotado com quase 200 mil torcedores ensandecidos pela vitória, e o Brasil, que começa ganhando, toma uma virada do Uruguai, com o último gol saindo a 11 minutos do fim do jogo. Um desastre!
Acredito que essa sensação não nos é estranha. Afinal, nossa geração viveu o 7x1, que, em alguma medida, é até pior e mais humilhante do que o “Maracanazo” e parece, mais uma vez, confirmar que somos apenas vira-latas, sem o pedigree de outros países, sobretudo europeus. Perceba que, quando falo “7x1”, todo brasileiro sabe do que estou falando. Faço questão de ressaltar isso, porque acredito que este esporte está amalgamado à cultura e identidade brasileiras de forma indissociável. Temos um ótimo exemplo recente com o pedido de Fernanda Torres para que os brasileiros não tratassem a indicação ao Oscar como uma Copa do Mundo. Ora, querida Fernandinha, como não, se o brasileiro só sabe torcer desse jeito?

Anora is the new Uruguai
No entanto, é fundamental sublinhar que embora tenha surgido no contexto do futebol, a análise de Nelson Rodrigues vai muito além das quatro linhas. Segundo o colunista, esse complexo está presente em todos os âmbitos da sociedade brasileira. Aqui adentramos no âmago do que nos importa.
O brasileiro se sente vira-lata perante o mundo, mas toda relação macro se dá também no micro: “o que está em cima é como o que está embaixo. O que está dentro é como o que está fora”, nos mostrou Hermes Trismegisto. É como se o Brasil se sentisse, portanto, o interior da Europa e dos Estados Unidos. Então, imagine você como não se sente o interior do próprio Brasil. Aos olhos do pobre vira-lata Baleia, a capital é sempre melhor que o sertão. Na capital tem chuva, tem trabalho, tem (supostamente) oportunidades – é o “Capital Dream”.

Charge: @piclesdecaju
Muitas vezes, aqui no interior, nos sentimos inferiores ou menos capazes. Desprovidos das estruturas e dos meios que os grandes centros urbanos possuem, parece não ser possível fazer igual ou melhor. Já tratei da antropofagia como ferramenta para superar essa crença, mas é preciso notar que nosso complexo advém de outros traumas. Elenco como principal o êxodo rural a que fomos submetidos.
O fato de o sucesso, o reconhecimento e, mais ainda, a sobrevivência se darem apenas fora, projeta na identidade interiorana a inferioridade como marca maior. Desse ponto de vista, não basta ser aqui, tem que acontecer fora, de modo que o reconhecimento do valor do nosso próprio povo só se dá, de fato, a partir da validação externa de um outro, hipoteticamente mais requintado, mais valioso e até mais gente.
Em Irecê, esse fator é muito forte, o que é até curioso, pois, em uma visita que fiz ao Memorial de Irecê, com mediação da historiadora Indira, eu soube que nossa cidade foi, na verdade, aglutinadora também. Tempos atrás, na época do feijão, quando os investimentos aqui ganharam muita força, Irecê passou a ser vista como uma terra de oportunidades. Não à toa, temos uma vasta gama de presença estrangeira que acabou por ficar nessas terras, principalmente paraibanos. Daí possivelmente nossa tendência a nos sentirmos também a capital da região, replicando, outra vez, o macro no micro. Costumo dizer que nossa cidade está mais próxima – em desejo de ser – de Las Vegas do que de Lençois.
O perigo mora em não praticar a antropofagia e, ao invés de deglutir o estrangeiro, sermos por ele deglutidos, acabando por tentar nos adequar a costumes que não são os nossos, perdendo de vista o que nos faz ser esse povo tão belo.
É curiosamente (ou não) a mesma discussão que permeia o futebol atual, no qual o Brasil perdeu o protagonismo para a Europa e vive o constante dilema de adequar-se ou rejeitar às técnicas e o modus operandi postos em voga pelos europeus. Por um lado, dizem os conservadores, a técnica assassina o futebol-arte dos brasileiros e suas capacidades improvisacionais de drible. Por outro, dizem os progressistas, tudo mudou e não há mais espaço para esse tipo de jogador.
No caso da nossa cultura, não é muito diferente. Devo confirmar o puritanismo? Dizer que o sertão tem sua intocável essência e deve permanecer inalterado perante as fortes ventanias do tempo? Mas como, se sou eu adepto da mudança, da cultura como matéria mutável? Manter no imaginário as casas de taipa, os vaqueiros, a seca, a fome e o povo marcado pela miséria é, além de anacronismo, um desserviço, pois fortalece a visão estereotipada e xenofóbica que nos acomete ano após ano. Apagá-los, todavia, é pior ainda, seria apagar os rastros de parte de nossa história.
Digo isso da posição de quem busca diariamente manter vivas essas figuras que constroem as raízes, em textos, peças, filmes e afins, ainda que, ao rega-las, tente eu fazer florescer um novo pensamento. Não sobre o que é, mas sobre o que pode ser o sertão. Muitas perguntas, não é? E nenhuma certeza. A não ser, talvez, o fato de que não tenho as respostas.
O que tenho e posso oferecer, ao menos, é a certeza de que essa caminhada em direção ao futuro deve ser feita com a consciência de que a inferioridade não é indelével – sequer existe.
Portanto, povo que aqui lê estas ruminadas palavras, em verdade vos digo: não somos vira-latas. Somos cavalos de raça, potros valentes que adentram sertões a passadas largas. Somos muito mais carcarás, aves de rapina com visão de águia, que enxergam de longe o mau presságio.
E, claro: gente.
Gente humana com potências e deficiências, em terras nas quais outros só veem as rachaduras, enquanto nós vemos, ou deveríamos ver nessas rasuras terrenas, caminhos para fazer essas águas submersas emergirem ao topo do mundo.
Lembre-se: Irecê, do tupi, águas submersas.