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“Certo dia fui ao mercado porque em minha casa faltaste feijão.
E almoço sem feijão num é almoço; é lanche.
Eu, como bom ireceense que sô, tenho respeito - secular - a sagrada hora do almoço. Portanto, sem feijão: não dá.
Fiquei na fila como todo bom cidadão de bem, cordialmente brigando com quem queria furar e gentilmente reclamando do atraso no caixa.
Ali, feito árvore parada no relento, esperando a derradeira hora de cometer o ato mais libidinoso que a humanidade já viu: pagar. Com dinheiro. Vivo!!
Ah, José… Em épocas de Nubank, tu querendo usar papel.”José, o poeta das Carahybas
Eis que escuto um senhor proferir uma das frases mais comuns à todo ireceense: "Ah, calor!". Dita de um jeito que você não sabe se é pedindo misericórdia ou fazendo prece. O segurança concordou, mas disse algo que me fez refletir: "Tá demais. Mas 'sertãozão' é assim , né? Quente."
Me deu um estalo.
Que curioso, não é? Note como o sertanejo médio costuma tratar o calor como um fato dado, uma parte fundamental de sua cultura e, até mesmo, motivo de orgulho, como se provasse a nossa resistência mediante os problemas. No entanto, tal fator, dificulta que se perceba as consequências do desmatamento da mata silvestre do nosso território, conhecida como “Caatinga”. Esse calor, caro amigo, não é normal.
Não percebe o segurança que sim, regiões semi-áridas são quentes, mas o que vem acontecendo em irecê é a desertificação em virtude da exploração da terra. Hoje, nossa cidade é uma mancha cinza no coração da Bahia. Ecologicamente falando.
Temos cada vez menos flora, o que tem transformado a região e mudando a nossa classificação para árido, e não mais semi-árido. Por conseguinte, a fauna típica da região também tem entrado cada vez mais em extinção.
Te pergunto: onde vamos parar?
Em dunas de areia domando minhocas gigantes do deserto?
Não me leve a mal, compreendo o cunho jocoso e cotidiano presente no comentário do nosso querido amigo segurança. Não me fere, mas me faz pensar. Nessa simples frase, "sertãozão é assim mesmo, né?", mora uma espécie de fetiche sertanejo em vangloriar o calor que muitas vezes nos pune. Lembro de quando estava na faculdade e, muitas vezes, entrávamos na discussão de qual cidade era a mais quente, quase como um atestado de quem era o povo mais resistente.
O sol, a seca, os cactos e a caatinga com seus solos rachados em período de estiagem, certamente constitui parte fundante do nosso povo. Falar do sertão sem a seca e, por consequência, sem o êxodo rural, seria como falar do Brasil sem o período colonial. Ou seja: doi assumir, mas é inegável.
Todavia, o sol quente que nos fortalece também nos pune. Com as chuvas tornando-se cada vez mais espaçadas não podemos levar adiante esse senso comum que vê no calor a comprovação da força sertaneja. Mesmo as grandes secas de 1877 e 1915, não foram puramente mazelas incontornáveis, como numa espécie de determinismo geográfico, no qual o sertão está fadado à seca. Pelo contrário, o sertão vai virar mar - diz a profecia.
Sem percebermos as problemáticas ambientais que enfrentamos no território, frente ao avanço voraz do urbanismo, o calor se tornará maior, as chuvas mais escassas e nós, um povo fadado ao fracasso ambiental. Consequentemente, social, pois, ainda que o ser humano faça questão de ignorar, nós somos frutos, folhas e alimento da terra. Se ela acabar, acabamos nós também. A terra, no entanto, se refaz. Nós: não.
O futuro é ancestral.
Porque se não for, a gente tá lascado.
*Marcos Di Assis, multi-artista do teatro, cinema e música. Nascido, criado e morando em Irecê, sertão norte diamantino.