MANIFESTO CARAHYBAS

As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do Irecê Notícias. Os conteúdos apresentados na seção de Opinião são pessoais e podem abordar uma variedade de pontos de vista.

Para quem não sabe, eu coordeno um curso livre de artes cênicas chamado “AABB Encena”. Em cada edição, elegemos um tema que vai nos nortear, no ano passado, elegemos a seguinte temática: “território e pertencimento na construção de uma identidade coletiva”. Basicamente, nos perguntamos como o território em que vivemos influencia nossa personalidade, pensamento, dialeto e todos os outros fatores que compõem um povo. O que nos levou diretamente à pergunta: “o que é ser ireceense?”

Como toda identidade, é difícil a definição cabal, mas, ao fazer essa pergunta, é provável que você escute um pequeno silêncio seguido da seguinte resposta: “Irecê só tem bar e cachaça”. É bem verdade que todo estereótipo guarda em si algum reflexo da sociedade, ainda que mal compreendido, e que os bares são vários e dominam a noite da cidade, porém, como artista da terra que sou, não posso jamais confirmar essa prerrogativa.

No entanto, ao negar esse estereótipo eu automaticamente me obrigo a buscar outras respostas. Não é fácil, mas a reposta artística que encontrei chama-se “Manifesto Carahybas”.

Foto: Jailson Silva

Caraíbas é o antigo nome de nossa cidade, quando ainda era vila, segundo as histórias, por conta da árvore de mesmo nome. Esse nome, no entanto, sempre me intrigou, pois escrito com “hy” - Carahybas - vira tupi, significa “sábio”, e representa uma tribo da América Central que pratica o ritual de guerra chamado antropofagia.

A antropofagia muito assustou os invasores portugueses quando aqui eles chegaram, pois trata-se de uma ritualística que envolve ingerir a carne humana dos inimigos mortos em guerra. Sim, você não leu errado: carne humana.

Dessa forma, os povos indígenas que realizavam a prática, esperavam consumir também as forças de seus inimigos e até, acreditavam algumas tribos, as suas fraquezas. Mas aí cê me pergunta:

-Ô, Assis, mas o que diabos “issaí” tem haver com arte, cultura e Irecê?

-Tudo, meu caro leitor. Tudo! Seja paciente com minhas contextualizações. Só assim pode-se falar algo verdadeiramente importante. 

Foi um texto chamado “Manifesto Antropofágico” que inspirou um dos maiores eventos da arte brasileira: a semana de arte moderna de 22. O escritor do manifesto, o senhor Oswald de Andrade, ao redigir frases como “tupi or not tupi. That its the question”, convocou os artistas brasileiros a praticarem a antropofagia artístico-cultural; comer, beber e deglutir as artes de vanguarda europeias na intenção de absorver as suas forças, mas cuspi-las de volta numa forma mais abrasileirada. Daí surge a grande obra “O Abaporu”.

Ora, cara leitora, o que resta para nós, explorada colônia, neste mar de imperialismos, neofascismo e afins, se não a antropofagia? Me diga! Não seria esse o cerne do pensamento decolonial estudado nas academias? Que entende a história do Brasil de forma indissociável do período colonial, ainda que deseje e busque superá-lo?

Pois quero ir além! “Só a antropofagia nos une”, disse Oswald de Andrade! O que proponho, portanto, é que a arte ireceense tome os mesmos rumos, que coma e beba Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Hollywood se necessário, com todas as suas estruturas, técnicas e mercados culturais, não para copiá-los, nem tampouco adorá-los como divindades maiores, mas para produzir uma arte feita na terra que não deva em nada - pois já não deve - ao que é feito em grandes centros.

O que descobri é fascinante. A resposta para o que é ser ireceense é justamente o fato de não ter resposta. A identidade cultural de Irecê, ao contrário de outras, como a nordestina, por exemplo, não está dada como fato consumado e de difícil mudança. Ela está em debate, em disputa, como a bola que sobrou no meio de campo após um chute desesperado da defesa. Mire, veja, somos nós a geração que pode inaugurar o movimento modernista ireceense, que pode destinar às próximas gerações os significados implícitos e explícitos da palavra Irecê e marcar o gol que define a memória de um povo.



“Nonde outros só veem rachaduras. Nonde outros veem pedra e espinho. Ei-nos aqui: no Paraíso... Não aquele além céu. Não! Aquele que se constroi com as mãos. Sertão Norte Diamantino, Arraial dos Carahybas.
Abra os olhos. Veja! Somos descendentes de Canudos, povo libertário das américas que se aglutinou feito formiga trabalhadeira. Não por genética, não por família, mas por ideais, crença e fé!
Aqui, nesta terra de lagoas, seremos os Carahybas. Aqueles que engolem o impossível (público grita), a carne que alimenta a liberdade (público grita mais forte) Aqueles que devoram o que antes nos devoraria. (Todos juntos. Empolvorosos) Antropofágicos.
Que venha o que vier, irmãos! Pois aqui, nesta terra, somos imortais! Somos o futuro que eles temem e o axé que eles jamais poderão destruir!

Este é o Manifesto Carahybas.”

Conselheiro, o profeta dos Carahybas

 

*Marcos Di Assis, multi-artista do teatro, cinema e música. Nascido, criado e morando em Irecê, sertão norte diamantino.
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